Ana Paula Frazão: Tudo acostuma


Na vida tudo acostuma. Coisas boas e coisas ruins. Acostumamos com um amor mais ou menos, com uma casa mais ou menos, com uma escola mais ou menos. Acostumamos a andar por calçadas tortas, a não ter ciclovias e a não frequentar espaços públicos. Acostumamos até com as limitações causadas pelas pandemias. Porque a cultura muda e se constrói no tempo e no espaço.

A cultura é algo tão mágico, tão etéreo, tão moldável, que até mesmo quando não se investe em acesso à cultura, cria-se uma cultura. Uma cultura ruim, mas cria-se. Nossa cidade está há 5 anos sem festas, sem eventos, sem aulas de dança, sem biblioteca no CAIC... e a gente nem nota. Tem alguém apostando na nossa capacidade de esquecer, de não perceber, de se acostumar.

O acesso à cultura pode parecer uma bobagem frente a tantos problemas que enfrentamos, mas é esse acesso, que nos é garantido por lei, que nos constrói enquanto indivíduos e traça nossas relações com a sociedade em que vivemos. O acesso à cultura nos faz mais reflexivos, mais críticos, mais empoderados, mais fortes, mais corajosos. Nos coloca como parte do lugar onde vivemos. “Eu canto na minha igreja”. “Eu faço teatro no Teatro da Praça”. “Eu participo de um grupo de dança”. Esse pertencer vem nos sendo direto, lenta e discretamente. Daqui a pouco seremos apenas o cidadão que tem bons asfaltos, mas péssimas calçadas, embora não tenha carro. O cidadão que tem passagem de ônibus barata, mas quem compra o vale transporte é o patrão que o explora, e no final de semana nem tem aonde ir.

Quando nos é negado o sonho, fica mais fácil nos convencer de nossa insuficiência. Não somos inteligentes o suficiente, não somos bonitos o suficiente. Nossas roupas não são novas o suficiente, nosso celular não é suficiente, precisamos nos endividar por um mais caro, mais novo, mais moderno. Nosso carro não é suficiente. Nossa casa não é suficiente. Porque nos acostumam a olhar para fora, a nos compararmos com os outros, a gastarmos mais do que temos, a sermos mais facilmente enganos e manipulados.

Precisamos ser compreendidos também a partir de nossos afetos, de nossas carências, de nossa humanidade. Precisamos de uma cidade que nos acolha e nos possibilite ser parte e ser único. O acesso à cultura, as artes, a filosofia, os bons hábitos, nos transformam lentamente e nos fazem compreender que tudo que precisamos já está em nós. Já somos o suficiente. Temos forças, potencialidades, qualidades que só precisam de ser notadas, despertadas, valorizadas, aí meus amigos e amigas, ninguém nos segura. Lutamos por direitos, temos orgulho de cada uma de nossas conquistas, damos valor a tudo que temos e ganhamos força para conseguirmos muito mais. Nenhum olhar torto nos abala e entendemos o nosso lugar no mundo. Nos acostumamos a sermos o máximo! E o que eu quero dizer, é: não se acostume com menos que isso. Você é suficiente e merece se acostumar com cidade bonita, com comida no prato, com ótimo atendimento de saúde, com segurança pública, com música, com dança, com teatro e com festa.

Este texto é de responsabilidade do autor/da autora e não reflete necessariamente a opinião do Matéria Pública.

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