Geissa Franco: A agenda legislativa sobre mulheres das Deputadas Federais

Nos últimos anos pudemos observar no Brasil, na América Latina e no mundo o florescimento de um debate já antigo na academia, mas não tanto para a sociedade, a discussão sobre igualdade de gênero. Autoras como Simone de Beauvoir (2016) em seu livro “O segundo sexo” já nos apresentavam que os caminhos e modos de ser das mulheres são construídos socialmente. Essa construção social na atualidade ultrapassa o âmbito privado já que as mulheres vêm conquistando, especialmente a partir do século XX, cada vez mais os espaços públicos.

Neste sentido, é possível debater os direitos das mulheres sobre diferentes perspectivas. Acredito que a visão de Crenshaw (1989) através da teoria interseccional, que aponta diferentes formas de ser mulher e as diferentes maneiras que as mulheres sofrem violências é importante para entendermos a mulher no século XXI. A autora aponta  recortes interseccionais de raça, classe, gênero (mulheres cis, trans, não-binárias, etc), orientação sexual, mulheres com deficiência, e nos demonstra que quando debatemos sobre direitos das mulheres devemos levar em conta que essas fazem parte de um grupo, mas possuem suas especificidades e diferentes lutas dentro de um movimento mais amplo.

Coloco a teoria interseccional, pois meu recorte de estudo é a mulher na política, em especial as mulheres que ocupam o poder legislativo na América Latina. Não levar em conta que todas as mulheres sofrem com as estruturais patriarcais, mas que elas não sofrem da mesma forma, já que há outras variáveis como por exemplo a raça que estão conectadas com o debate de gênero, nos faz ter uma análise rasa sobre como as mulheres nos espaços de poder podem construir agendas positivas para as diferentes formas de ser mulher.

Pesquisar a atuação legislativa de parlamentares mulheres se insere dentro dos estudos sobre comportamento legislativo que já estão bem estruturados dentro do campo da Ciência Política (ARROW, 1951). No entanto, entender as mulheres nesses espaços abarcando variáveis de cunho social, cultural e principalmente institucional são mais recentes na literatura (HÖHMANN, 2019; BRATTON, 2005).

Na década de 1970, observamos o nascer de pesquisas sobre a produção legislativa de deputadas estaduais nos Estados Unidos (Frankovic,1977) e o questionamento inicial que se aprofundou especialmente após a década de 1990: “Mulheres quando inseridas na política buscam produzir sobre a temática de mulheres?”, “Podemos dizer para além de uma questão numérica que ter mais mulheres nas instituições políticas é importante para a representação feminina?”, “Mulheres possuem uma agenda legislativa diferente dos parlamentares homens?”, “As parlamentares mulheres têm mais chance de aprovarem proposições voltadas a temática social que outras proposições?”. (SAINT-GERMAN, 1989),

Dessas perguntas feitas por pesquisadoras e pesquisadores no mundo, nasceu minha inquietação e questionamentos iniciais no Mestrado, e assim, resolvi entender uma das inúmeras facetas da atividade parlamentar das deputadas federais, proposições legislativas de sua autoria.

 É importante salientar, que a compreensão do processo legislativo e  de como as mulheres trabalham nesse espaço, abarca inúmeras variáveis, já que os partidos, os postos-chaves, ideologia, fazer parte da coalizão de governo, a preponderância do Executivo ou não sobre as atividades legislativas de um país, a atuação anterior a entrada no parlamento por parte das parlamentares, as cotas, o sistema eleitoral  devem ser levados em conta para entender de uma forma multidimensional a atuação das parlamentares, mas aqui, busco inicialmente apenas apontar de forma descritiva e quantitativa o que as deputadas federais produzirem sobre e para as mulheres entre 1987 a 2017.

Em 30 anos de atuação no legislativo, primeiro é possível observar que o número de parlamentares aumentou. Na eleição de 1986 obtivemos a entrada de 27 parlamentares eleitas, já em 2014 (referente a última legislatura de minha análise) notamos o ingresso de 51 deputadas. Esse número não corresponde nem ao mínimo de 30% necessário para mudanças substanciais apontada pela Teoria da Massa Crítica (Dahlerup, 1993), mas fica nítido que a lei 12.711 de 29 de agosto de 2012 que instaurou nas eleições uma maior paridade entre os gêneros nas composições das chapas (Ao menos 30% de cada gênero, no máximo 70% de um dos gêneros), a famosa lei de cotas para as mulheres, trouxe algum aumento proporcional no número de mulheres eleitas.

Sobre a produção legislativa das parlamentares, em três décadas, as mesmas elaboraram 4.661 proposições legislativas (Projetos de Lei, Projetos de Lei Complementar e Projetos de Emenda à Constituição). Desse montante, como podemos ver na tabela 1, as parlamentares produziram 401 matérias legislativas relacionadas a temática de gênero.

Temáticas das proposições legislativas das deputadas federais (1987-2017):
(Clique para ampliar)

O tema mais abrangente são matérias que tratam sobre reconhecimento, sendo proposições que querem homenagear mulheres com nome de praças ou feriados nacionais, o que é conhecido pela literatura como temas honoríficos. Já o segundo e terceiro lugar se encontram respectivamente na pauta de violência de gênero e maternidade. Esse dado nos aponta que a produção sobre temas que fazem um recorte interseccional são menores, visto que o tema voltado a orientação sexual e identidade de gênero tem uma produção menor se comparado a violência de gênero e maternidade. Vemos também que as parlamentares produzem em menor grau as proposições que tratam sobre políticas públicas que lhes beneficiariam, na medida em que há 28 matérias legislativas sobre participação política de mulheres.

Através da tabela 2, percebemos com mais afinco que do total de 401 proposições apresentadas na temática de direito das mulheres, 30 delas foram aprovadas. Isso quer dizer que em 30 anos, as parlamentares conseguiram aprovar 13,36% do total das matérias enviadas para apreciação na Câmara. Tirando a matéria “reconhecimento” que possui um menor peso se comparada as outras por tratar de questões honoríficas, podemos perceber que a pauta das parlamentares nesses anos foi mais voltada a maternidade e violência contra as mulheres. Dois temas tratados pela mídia e pela sociedade com maior afinco. Pudemos observar que nenhuma das proposições legislativas sobre orientação sexual e se transformaram em políticas públicas.

Tabela 2 – Situação das proposições legislativas sobre mulheres enviadas para apreciação na Câmara.
Tabela produzida pela autora através da raspagem de dados do site da Câmara Federal. (Clique para ampliar)

Com esses dados iniciais podemos entender parcialmente o maior foco de atuação das legisladoras brasileiras, e questionar até que ponto as formas de ser mulher apontadas pela teoria de Crenshaw estão sendo representadas, já que temas que abrangem as mulheres bissexuais, homossexuais, travestis e transgêneras são deixados de lado pelas próprias legisladoras. Além disso, as parlamentares conseguiram obter uma taxa de sucesso de quase 14% na produção sobre direito das mulheres, um número expressivo se comparado com a taxa de sucesso de outros temas que aponto em minha dissertação. No caso brasileiro, mulheres legislando sobre temas de mulheres obtém maiores proporções de aprovação de matérias legislativas, nos mostrando como a entrada de mulheres nas instituições masculinas é um grande avanço para maiores direitos para as mulheres e com isso a maior consolidação democrática do país.

Percebemos também que as mulheres têm um maior interesse em legislar sobre pautas voltadas a maternidade e violência de gênero. Questões que muitas vezes estão voltadas aos espaços privados, diferente dos temas sobre acesso ao mercado de trabalho ou participação política das mulheres, que se relacionam a atuação de mulheres nos espaços públicos. Maternidade e violência contra mulher são pautas relevantes, mas o foco em grande abundância nesse tema nos faz pensar que de maneira geral as parlamentares brasileiras possuem um foco de legislação para algumas formas de ser mulher, em especial para as mulheres mães. Quando analisamos as mulheres nos espaços públicos, parece haver um menor interesse de legislar por parte das deputadas federais brasileiras.

Podemos colocar como um problema de pesquisa para trabalhos futuros, se o menor número de proposições legislativas voltadas a questão de orientação sexual e identidade de gênero e o maior número de proposições sobre maternidade e violência de gênero não se relaciona ao perfil social das parlamentares que ingressam no legislativo. Uma análise prosopográfica correlacionada a produção legislativa parece trazer respostas mais profundas ao porquê da agenda feita por mulheres sobre mulheres ser de determinada maneira.


E-mail : geissa_franco@hotmail.com

Este texto é de responsabilidade do autor/da autora e não reflete necessariamente a opinião do Matéria Pública.


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